Irmã Cibele e a menina - Conto de Moreira Campos
Quando a mãe dos meninos morreu, Dona
Madalena, que é espírita e mulher de muito prestígio (à tarde, toma o automóvel
do marido, dirigido pelo motorista, e sai em visita aos seus pobres e doentes)
recolheu as crianças e as distribuiu como pôde. Falou com Irmã Cola para ficar
com a menina, que, por sinal, não é tão menina: tem as pernas bem-feitas e os
cabelos bonitos, elogiados pela empregada da casa, ainda na hora em que ela
saía:
– São lindos os cabelos dela!
Dona Madalena
chegou ao colégio na hora em que as freiras merendavam na mesa grande da área
de travejamento forte. Irmã Cola se levantou, outras freiras se levantaram.
Dona Madalena recusou a fatia de bolo. Queria apenas a xícara de café com pouco
açúcar, que ela indicava com os dois dedos. Os pombos desciam do pombal e
vinham arrulhar no parapeito da área. Irmã Cibele, a recente, atirava-lhes
miolo de pão, que antes arredondava muito entre os dedos. O pavilhão das órfãs,
para onde ia a menina, fica no fundo do longo corredor, que se projeta sob a
sucessão de arcadas e tem como piso lajes antigas comidas por muitos passos. O
pavimento repousava escuro e tranqüilo, que era domingo: as máquinas de costura
fechadas, as cadeiras vazias, as peças de linho arranjadas sobre a mesa. Apenas
algumas órfãs se aproximaram interessadas pela novidade da companheira.
Examinavam-na. Ela olhava o forro, voltava a descansar na outra perna e
insistia em estalar os dedos, para o que Irmã Cola chamou a atenção. A maleta
de tábua da menina, comprada no mercado por Dona Madalena, foi mais uma vez
colocada a um canto no largo dormitório. Dona Madalena sentiu necessidade de
reforçar conselhos. Ela ia ser feliz, e útil. Aprender um ofício. Agora falava
mais para Irmã Cola:
– Crochê, que tanto serve para encher a vida da
gente.
Irmã Cola ria e confirmava. Pousou a mão sobre os
cabelos compridos da menina:
– Ela vai se dar bem.
A menina quis marejar os olhos, e mordeu o lábio.
Quem se empolgou também com os cabelos da menina
foi Irmã Cibele, que é recente e atira miolo de pão para os pombos. Alisa-os
com as próprias mãos, enquanto a menina se aplica no bastidor, o que é
inusitado. As outras órfãs deixam cair os trabalhos no colo mais ou menos
surpresas, uma delas de boca aberta, a agulha suspensa no ar. Irmã Cibele teve
a idéia do laço de fita, para compor o rabo-de-cavalo, que apreciou recuando:
– Fica lindo!
– Cavilação...
Quem falou assim, de passagem, foi Irmã Teresa.
Irmã Cibele pareceu perturbar-se muito. Baixou os olhos: ela tem esse jeito de
os escorregar pelo chão. Enfiou as mãos muito alvas e finas nos bolsos largos
do hábito, apressou-se, sem muita necessidade, em atender à velha milionária de
lorgnon, com automóvel parado sob o castanheiro no portão do orfanato, que
viera encomendar enxoval para o casamento da neta. Irmã Cibele explicava:
– São aplicações muito bonitas.
A velha milionária estava mais interessada na
toalha de labirinto. Irmã Cibele ainda olhava de lado, disfarçadamente,
sentindo os passos de Irmã Teresa, que continuava o seu passeio de inspeção.
Irmã Teresa é pesadona, de tornozelos inchados, meias grossas e velhas
sandálias, por causa dos joanetes. Toma de manhã o seu remédio para o
artritismo, servindo-se do copo de água no filtro, e examina os dedos doloridos
e tortos à luz do sol na arcada da área. O que mais lamenta é já não poder dar
um ponto de crochê. Não tem tato, energia nos dedos, a agulha cai e ela sente
dificuldade em encontrá-la debaixo da cadeira de balanço. Superintende o
orfanato. Irmã Cola tem mais a direção do colégio e o cuidado da capela: é
muito contrita nos seus votos. Irmã Teresa vigia, superintende:
– Cavilação... muita cavilação.
Embirra com a simpatia de Irmã Cibele pela menina,
aquele agarradio tolo, que nem é próprio de uma freira. Ainda assim, Irmã
Cibele encontra meio de pegar a menina pela mão e correr com ela até o jardim,
que é outra paixão de Irmã Cola: tem verdadeira loucura pelo canteiro de rosas
e se contraria com as formigas. Ela própria, Irmã Cola, está ali na manhã de
domingo e indica da calçada do pátio as plantinhas que ela quer que as duas
mudem:
– Lá... perto da roseira.
As mãos da menina estão sujas de terra. Irmã Cibele
tem a barra do hábito umedecida pela grama. Sacode-o na calçada, batendo com os
pés. As velhas, que balançam sempre as cabeças e se xingam, continuam a aguação
dos outros canteiros com os pesados aguadores. Irmã Cola já se afastou, e Irmã
Teresa apareceu sob a arcada, no seu jeito meio míope de cerrar as pálpebras
por trás dos óculos, como se contemplasse o telheiro em frente, onde os pombos
voltam a arrulhar.
Vigia.
Tudo se deu com a cumplicidade da tarde. O sino da
capela já chamara para o terço. As mesmas máquinas de costura fechadas no
pavilhão do orfanato, sobras de pano e fios pelo chão, as peças de linho
ordenadas sobre a mesa. Irmã Cibele alcançou a menina no corredor do
dormitório, depois de ainda consultar pela porta onde há a cortina. Estava
muito em cima da menina, e sem palavras, que foram articuladas num sopro.
– Seus seios estão ficando lindos...
A menina propriamente não se surpreendeu. Teve
receio, porque também olhou para os lados, para a porta da cortina. Tremia.
Irmã Cibele também tremia e ofegava, as narinas acesas. Quis ver-lhe os seios,
e ela mesma os procurava, as mãos muito ágeis. Perdia a cabeça. Beijou-os, e
agora os sugava, babando-se e repetindo incoerências:
– Ahnn!
A sensação da menina foi de cócegas. Quis
encolher-se. A excitação começou a empolgá-la, levantava-a nas pontas dos pés:
a língua de Irmã Cibele era ativa e morna, os dentes mordiam com muita
delicadeza, quase roíam. Um rumor qualquer? Irmã Cibele recompôs a menina,
compôs-se a ela mesma e marchou rápida pelo corredor em direção à capela, os
olhos baixos, naquele jeito seu de os escorregar pelo chão.
A menina meteu-se pelo dormitório. Está sentada na
beira da cama e rói a unha. Os pensamentos são contraditórios. Sente-se como
que esvaziada, lassa. Lembra-se distantemente de Dona Madalena, que viu pela
última vez na festa de bodas de prata de Irmã Cola. Interfere a figura de Irmã
Teresa. Talvez procure sentar-se junto dela com o bastidor. Nada é certo, há incoerências.
Persiste a sensação dos dentes nos mamilos, que ela tenta mais uma vez desfazer
com a mão, a blusa ainda úmida pela saliva de Irmã Cibele.
(Moreira Campos, Os Doze
Parafusos, in Obra
Completa: Contos II, São Paulo, Ed. Maltese, 1996)
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