Carta da corcunda para o serralheiro - (Maria José - heterônimo de Fernando Pessoa)
No post anterior lancei a música da Carminho - Bom dia, amor e soltei a prévia que ela era inspiração de um texto do Fernando Pessoa. Bem, agora disponibilizo aqui pra vocês o tal texto.
Essa edição é da Teresa Rita Lopes e ela deixou o texto nos moldes originais do autor, por isso uma pontuação tão diferente da que temos e conhecemos hoje, mas possível de ser lido normalmente e acredito que vá encantar a tantos quanto encantou a mim.
Fernando Pessoa criou vários heterônimos famosos e conhecidos por contarem suas dores e amores de forma tão bela. Maria José é mais um desses heterônimos que traz enfim uma voz feminina à Pessoa, mas não menos triste e descrente de si, esse lugar de um "ninguém" que Pessoa coloca em seus "eus" para falar de si é tão marcante e profundo que marca o texto tão ferozmente que a dor que eles de fato sentem chega aos leitores em questões mais profundas que o esperado... Pessoa ficou bastante conhecido e depois estudado por muitos devido essa sua capacidade de criar e depois cuidar 'fielmente' de cada heterônimo com uma singularidade própria na voz que cada um tinha.
Fernando Pessoa criou vários heterônimos famosos e conhecidos por contarem suas dores e amores de forma tão bela. Maria José é mais um desses heterônimos que traz enfim uma voz feminina à Pessoa, mas não menos triste e descrente de si, esse lugar de um "ninguém" que Pessoa coloca em seus "eus" para falar de si é tão marcante e profundo que marca o texto tão ferozmente que a dor que eles de fato sentem chega aos leitores em questões mais profundas que o esperado... Pessoa ficou bastante conhecido e depois estudado por muitos devido essa sua capacidade de criar e depois cuidar 'fielmente' de cada heterônimo com uma singularidade própria na voz que cada um tinha.
A carta da Corcunda para o Serralheiro
Senhor
António:
O
senhor nunca ha de ver esta carta. Nem eu a hei de ver segunda vez porque estou
tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o nao saiba, porque
se não escrevo abafo.
O
senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto á
janella quando o senhor passa para a officina e eu olho para si, porque o
espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem
importância na corcunda do primeiro andar da casa amarella, mas eu não penso
senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquella rapariga loura alta
e bonita; eu tenho inveja d’ella mas não tenho ciúmes de si porque não tenho
direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e
tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir
á rua e fallar comsigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu
estimava conhecel-o de fallar.
O
senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida
sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguem que gostasse de mim como
se gosta das pessoas que teem o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o
direito de gostar sem que gostem de mim, e tambem tenho o direito de chorar, que
não se negue a ninguem.
Eu
gostava de morrer depois de lhe fallar a primeira vez mas nunca terei coragem
nem maneiras de lhe fallar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito
de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu
tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer
coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu
sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as
corcundas são más, mas eu nunca quiz mal a ninguem. Alem d’isso sou doente, e
nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove
annos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta edade, e doente, e sem
ninguem que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos,
porque é a alma que me doe, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu
até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida
que eu nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber
tudo.
Desculpe
escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vae ler isto, e mesmo que
lesse nem sabia que era comsigo e nao ligava importancia em qualquer caso, mas
gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só á janella, e
ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguem que goste de nós, porque
tudo isso é natural e é a familia, e o que faltava é que nem isso houvesse para
uma boneca com os ossos ás avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve
um dia que o senhor vinha para a officina e um gato se pegou á pancada com um
cão aqui defronte da janella, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé
do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a
janella, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a unica vez que o
senhor esteve a sós commigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu
esperar.
Tantas
vezes, o senhor não imagina, andei á espera que houvesse outra coisa qualquer
na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e
talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a
direito para os meus.
Mas
eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima
de um estrado para poder estar á altura da janella.. passo todo o dia a ver
illustrações e revistas de modas que emprestam á minha mãe, e estou sempre a
pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquella saia ou
quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu ás vezes me
envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu
não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda
por cima ter vontade de chorar.
Depois
todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque
ninguem julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não
tenho que explicar porque é que estive distrahida.
Ainda
me lembro d’aquelle dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul
claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que
costuma ser. O senhor ia que parecia o proprio dia que estava lindo e eu nunca
tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua
amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ella mas com outra qualquer,
porque eu não pensei senão em si, e foi porisso que invejei toda a gente, o que
não percebo mas o certo é que é verdade.
Não
é por ser corcunda que estou aqui sempre á janella, mas é que ainda por cima
tenho uma espécie de rheumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou
como se fosse paralytica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto
ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me acceitar que o senhor não
imagina. Eu ás vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janella
abaixo, mas eu que figura teria a cahir da janella? Até quem me visse
cahir ria e a janella é tam baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais
maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas á
vela e a corcunda a sahir pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter
nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como
tinha vontade de ser.
(…)
- e
emfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? [texto
não lido]
O
senhor que anda de um lado para o outro não sabr qual é o peso de a gente não
ser ninguem. Eu estou á janella todo o dia e vejo toda a gente passar de um
lado para o outro e ter um modo de vida e gosar e fallar a esta e áquella, e
parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui á janella por tirar
de lá.
O
senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saude o que é a gente ter
nascido e não ser gente, e ver nos jornaes o que as pessoas fazem, e uns são
ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros
estão na vida da sociedade e casam e teem baptizados e estão doentes e
fazem-lhe operações os mesmos medicos, e outros partem para as suas casas aqui
e alli, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e ha
artigos assignados por outros e retratos e annuncios com os nomes dos homens
que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isso o senhor não imagina o que
é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janella de limpar o
signal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da agua.
Se o
senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus na rua,
e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez
não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá
para onde se vae se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A
Margarida costureira diz que lhe fallou uma vez, que lhe fallou torto porque o
senhor se metteu com ella na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja
a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque metter-se
alguem comnosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque
ninguem acha que eu sou nada a não ser uma especie de gente que está para aqui
a encher o vão da janella e a aborrecer tudo que me vê, valha me Deus.
O
Antonio (é o mesmo nome que o seu, mas que differença!) o Antonio da officina
de automoveis disse uma vez a meu pae que toda a gente deve produzir qualquer
coisa, que sem isso não ha direito a viver, que quem não trabalha não come e
não ha direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que
não faço nada senão estar á janella com toda a gente a mexer-se de um lado para
o outro, sem ser paralytica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem
gosta, e depois poderia produzir á vontade o que fosse preciso porque tinha
gosto para isso.
Adeus
senhor Antonio, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a
guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de
eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa
desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso
esperar mais.
Eu
amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Ahi
tem e estou a chorar.
Maria José
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