Última vez
Cuidava da mãe idosa. Depois da morte do pai, Aurelina nada fazia a não ser passar seus dias em casa remoendo a história dos 50 anos de casamento dos pais e de como havia feito infeliz escolha Dona Marta, sua mãe. Na época, Marta fora motivo de inveja em toda cidadezinha de Caritó. Casar já era um grande feito para as moças da cidade, mas no seu caso, ainda conseguir o melhor partido das redondezas era de causar ódio. Para os homens da cidade o sentimento era o mesmo, Jovino era sortudo demais por casar com Marta, era tudo que queriam.
Ela não tinha as feições normais dos habitantes de lá. Não sabendo-se como, nascera abençoada, diziam eles, tinha olhos claros, cor de mel, longos e lisos cabelos pretos e em sua mocidade, Dona Marta possuíra invejável silhueta, cinturinha fina, que desaguava em quadris daqueles de faziam babar quando passava. Contorno este que, por sinal, fora herdado por Aurelina.
Sobre o começo do relacionamento, apesar de serem feitos um para o outro em termos de beleza e educação, Jovino já ganhava a fama de encrenqueiro na cidade, torrava o dinheiro do pai e mal ajudava em casa, bebia bastante já aos 15 e se metia com as empregadas que passava por lá, ou nas casas vizinhas. Dizem até hoje que Caritó crescera com metade composta de primos/irmãos de um mesmo progenitor.
A sem-vergonhice de Jovino, Marta conseguiu cortar, ele tinha real devoção pela moça. As empregadas todas podiam confirmar o 'novo homem' que surgira. Mas a bebedeira, essa parecia a companheira fiel, maior que tudo, razão de mantê-lo em vida e esta ele não conseguia deixar partir. Casaram-se assim mesmo, Marta acreditava que com o tempo isso acalmaria, pobre ilusão. Mudaram-se de Caritó para começar nova vida e dar futuro melhor para os filhos que viriam. Do matrimônio tiveram dois, com diferença de dez anos um para o outro. O mais velho João, quase não falava com o pai, cedo saiu de casa, não aguentava a bebida, as brigas e, acima de tudo, o tratamento que este tinha com sua mãe. Um dia quase saíram para morte, não fosse Jovino cair ao chão sentindo uma pontada no peito. Daí em diante a bebida cessou, mas outra companheira fiel surgira, na verdade, essa sempre esteve lá, só se acobertara nos braços da anterior, por isso Jovino não se rendia.
A casa dos quatro foi ficando cinza. Depressão não era algo que eles esperavam, não sabiam nem o que era isso, mas viram dia após dia sucumbir o antes altivo e assustador pai que temiam, tornar-se cômoda antiga, parte da casa, fechada, emperrada. João logo saiu, quase não dava notícias. Última vez, ligara para chamar para o casamento com moça que nem conheciam. Todos foram. E então, Jovino.. outra pontada.. e dessa vez, fim.
Passara já seis meses, um ano ou dois. Aurelina não sabia ao certo. Parecia mais um sonho, sonho desses que ninguém quer sonhar. Largara tudo, vivia em casa para mãe, perdera o brilho, o sorriso, a cintura, os quadris. Não se reconhecia, parou de falar com os amigos, tinha se dado como morta para o mundo, pois era assim que se sentia todos os dias ao ter de acordar.
Certo dia, poderia ser como qualquer outro, mas esse carregava um peso diferente. Aurelina acorda feliz, como há muito não lembrava. Sonhara de verdade. No sonho ela ria, estava com os amigos, antes tão necessários, estava linda num vestido azul e ao seu lado um amor antigo, desses que marca e desgraça a vida por tempos, quiçá pra sempre. Fora seu último namorado antes da morte do pai. Estavam juntos e felizes e parecia que nada mudaria aquilo. E assim decidiu que seria. A mãe não tinha mais ninguém no mundo, eram apenas as duas. Levantou-se. Beijou e abraçou sua mãe, coisa que nem sabia quando havia feito a última vez, fez o café, colocou boa dose dos remédios de dormir que tomavam. Cada uma bebeu seus dois copos matinais e apagaram. Era sábado.
Segunda pela manhã, chega a moça que ia uma vez na semana, um trabalho sacal, mas dava bom dinheiro. Já na porta, um cheiro de gás insuportável. Entrou, estavam uma ao lado da outra. Dona Marta, parecia serena, mesmo sufocada, já Aurelina, esta estampava um lindo sorriso, um estranho e feliz sorriso nos lábios que nunca vira antes.
*Tela do Rogerio Fernandes
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