Livres, guiados por um aroma - Matilde Campilho





Foi Eduardo Chillida quem lançou a pergunta "será que a única coisa estável é a persistência da instabilidade?". Fomos nós que lhe fizemos justiça, estes olhos cheios de água são de todos nós, foi nossa geração que aprendeu tudo sobre as armas e ainda assim lutou por elas. Fomos você e eu que varremos cidades à procura de uma violência qualquer. Sim, nós: no terraço de um hotel contando as constelações e fingindo que isso é que era o amor, procurando brigas entre o prego e o lençol, discutindo em nome de uma palavra latina ou afastando todas as possibilidades de paz em nossos quartos. Chillida observou as árvores e anotou assim: “Algo que eu não sei, sabe-o a folha que vibra naquele ramo”. E nós não fizemos outra coisa que não fosse abanar os ramos, sempre à procura de respostas, sempre à procura de um movimento muito mais veloz do que nós. Abanando ramos, demos cabo do sussurro fundamental da natureza.

Davi Kopenawa é que tem razão quando diz que as cidades são lugares que provocam muita aflição. Kopenawa, xamã da tribo indígena Yanomami, escreveu em parceria com Bruce Albert um livro chamado A Queda do Céu. Nele conta que os homens brancos são como formigas e que isso lhe parece triste, que onde quer que se vá na cidade há uma multidão de gente impaciente sempre a falar do trabalho e do dinheiro, que aqui quase ninguém dorme e que por causa disso corremos sonolentos o dia inteiro. Quem não dorme, não sonha, e talvez tenha sido por culpa de nossas insónias que resolvemos tantas vezes pegar em granadas. Estamos quase no fim do ano 2015 e há coisas explodindo por todos os lados. Em Paris, em Bombaim, em Ancara, em Mariana, em Beirute ou dentro de certas salas íntimas, agora há sempre um estrondo que arrasa com o silêncio.

Devíamos ter guardado o barulho das explosões para nossas duras vigílias. Fraquejámos. Colocámo-nos na latitude das formigas e nem assim nos demos conta de nosso tamanho. Somos da estatura de uma poeira de estrela perdida no cosmos, somos um em dez triliões. Viemos aqui para tomar uma laranjada e pouco mais, talvez também para passar a mão na cabeça de nossas crianças, quem sabe até para falhar, viemos a este planeta para falhar vezes sem conta e para de vez em quando rastejar de madrugada. Ligámos para alguém pedindo ajuda e ninguém atendeu – só assim percebemos que apenas nós nos salvaríamos durante este curto tempo sem redenção possível.

Eduardo disse: "Graças ao espaço existem limites no universo físico, e eu posso ser escultor." Foi aí que ele plantou ferro junto ao mar e nos comoveu a todos. Estamos aqui para chorar também, não adianta negar. Viemos aqui para olhar o mar e a imensidão, para rezar um bocado quando todos os objetos se estilhaçam em volta de nossas cinturas, viemos para colocar a paixão em lugares errados e pagar por isso durante anos a fio. Viemos para ser pais, para ser filhos, para escutar os nossos velhos em seu leito de morte. Chegámos aqui despidos. Foi-nos facultado um bocado irrepetível de poeira, um a cada um de nós, e nossa grande bênção seria carregá-lo nas costas até ao último dia de nossas vidas. Somos uma raça de equilibristas e Chillida entendeu isso na perfeição.

Duvido muito que Eduardo tenha segurado algum punhal na frente da garganta de alguém. Ou que não tenha esperado por sua paixão à porta de um apartamento a altas horas da madrugada. Duvido que tenha negado uma flor, fosse a quem fosse. Porque Chillida sabia que todos temos as mãos cheias de ontem, mas que nos faltam as mãos de amanhã. Eduardo, todos os amantes e combatentes te deveriam erguer uma estátua. Quando o vocalista dos Strokes diz "Sit me down/ shut me up/ I'll calm down” & etc é por causa de ti. Quando Tom Waits arranha um "Forgive me pretty baby but I always take the long way home" é por ti também. Quando eu choro por ataques a todas as cidades que talvez nem nunca devessem ter sido construídas, quando eu sinto saudade da cara de meu amor mas já nem sei que cara tem meu amor, nunca soube, quando atravesso supermercados em busca do melhor sabão, quando minha avó não está mais aqui, quando Deus não tem um corpo mas devia ter, quando Beirute se parece muito com Lisboa, quando As Mil e Uma Noites já não chegam para encadear nossas vigílias, é bom saber que existiram reis da poeira como tu. É à poeira de nossa genética que nos seguramos. Agora que tudo explode, a única coisa estável é a persistência da instabilidade.

Eduardo, meu bom escultor basco: todo está muy triste. Ni las luciérnagas nos alumbran los pasillos. Mas seguiremos. Com um grãozinho de pó entre as omoplatas nós seguiremos, até ao grande amanhã. Mesmo que o amanhã nos traga o mesmo terror, o mesmo medo, a mesma inversão da ternura. Não, não é dos outros que temos medo – nós temos medo é de nós. O punhal violento da intolerância está encostado a nossas gargantas, isso é certo, mas são nossas próprias mãos que o seguram. Abusámos da natureza e abusámos do segredo.

Quem sabe se a geração que vem depois de nós não achará, entre o prego e o lençol, um ângulo amoroso que tenha 88 ou 93 graus. A virtude – como tu disseste – está perto do ângulo reto, mas não está nele. A virtude está mesmo ao lado daquele rochedo sobre o qual repousamos nossos olhos. Julgamos estar atentos, mas estamos tão distraídos. E é por nossa distração que agora tudo explode.


*Texto original saído na coluna que Matilde Campilho assina em Cultura Ipsilon Aqui

Comentários

Postagens mais visitadas