Devoção - Patti Smith





"Eu era uma oponente digna, mas não me esforçava para vencer." p60

"Algumas coisas se dissolvem antes de se tornar memória." p80



Devoção de Patti Smith é um livro aparentemente curto, porém denso e complexo em tema. É um ensaio composto de uma história ficcional que leva esse título. De início acompanhamos Patti em uma viagem para Europa onde ela divaga um pouco sobre o que vê, visita e lembra desde a última vez que havia ido lá. A viagem ocorre para que ela faça uma fala para jornalistas sobre escrita e assim leva consigo dois livros, entre eles um de Simone Well. Começa daí a tocar em pontos sobre sua relação com essa escritora e sobre o ato da escrita, como surge o ímpeto de escrever que toma conta do sujeito ao ponto de ocorrer para além de um mero desejo, fruto de inspiração, mas ser aquilo que consta como parte fundamental dele. Assim, juntando fragmentos da viagem e do que vê e lembra, passando por lugares, cafés, igrejas, túmulos que suscitam algo em Smith que a faz necessitar de contar uma história, surge a escrita de Devoção.

À primeira vista, a história parece simples, Eugenia, de 16 anos é uma exímia patinadora, sente que é apenas no momento em que ela calça os patins e desliza que é completa. Ela se esconde perto de uma clareira onde há um lago congelado para assim praticar e conhece, nesse entremeio entre o colégio e o "ringue natural", Alexander Rifa. Ele, um sujeito muito mais velho a observa patinar e surge daí uma vontade de ter aquela menina, de alguma forma trazê-la para sua vida. O desenrolar do romance entre os dois é difícil, com relação aos sentimentos, aquela descoberta do sexo, do corpo, de se relacionar com um outro e também pelo fato dele, depois de um tempo se apresentar como alguém sedutor que usa disso para ter controle total da jovem. De certo modo, é assim que o desenrolar da história se dá, ele querendo tirá-la desse lugar de quem decide por si e decidir por ela, levá-la com ele para onde for, até para longe da patinação. Ele a chama de Filadélfia e ela ao questioná-lo do por quê desse nome tem como resposta "Porque é um lugar que um dia foi o berço da liberdade".
Essa frase no livro é impactante e se torna peça chave no desenrolar da trama.

Ao acompanharmos os dois, sabemos um pouco mais sobre a vida íntima de cada um, sobre quem compõe o núcleo familiar de Eugenia e como ela foi parar ali sob a tutela e cuidados de um alguém fora do centro dela. O enredo termina de modo surpreendente, eu particularmente, acho que Smith escreveu algo que ao final deixa em aberto não a história, mas um pensamento de conotação ética e filosófica, com relação a um ponto pouco discutido, do qual depois entendemos que ela retira do Mito de Sísifo de Albert Camus e da teoria dele sobre o sujeito humano e sua relação com a vida e morte - algo que perpassa sua obra de modo muito denso - e do qual ela vai explorar nesse livro. 
Através de uma personagem que muda de vida devido um homem mais velho que ela encontra e que tenta podá-la do universo do qual ela deseja pra si, e que talvez sozinha também não o tivesse alcançado, mesmo que brevemente, em vida. Patti lança questões sobre o desejo, o que impulsiona a vida de alguém e o que seria da ordem de uma punição não poder viver dessa paixão. É o que suscita também para a escritora debater para si a sua relação com a escrita, fazendo reflexão maior ao final desse livro que é relativa aos processos criativos. Por que escrevemos? Como um texto surge e possui determinadas ideias que precisam ser colocados no papel? Ao fim, descobrimos que Patti visita uma das casas de Camus, na verdade, onde ele escreveu sua última obra que ficou inacabada O primeiro homem, e que a autora possui uma relação antiga com a literatura do argelino. Assim, Devoção, para além da questão ética, trata sobre o viver, as penas justas ou injustas que carregamos na nossa existência a partir das nossas escolhas. 





O livro veio como brinde da caixa de março da TAG Curadoria e foi um presente e tanto entrar em sintonia com uma das obras dessa escritora. O livro principal foi o Só garotos, livro de memórias e que relata também sua vida com o músico Robert Mapplethorpe. 
Recomendo muitíssimo a leitura de Devoção e em breve venho trazer minhas singelas considerações acerca de Só garotos

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