As corujas- Conto de Moreira Campos
Ele conversa muito consigo mesmo, repete-se, os olhos no chão
e metido no dólmã de brim listrado, os pés redondos nas alpercatas. Resmunga,
insistente. Fecha as janelas do velho necrotério. Apanha os pedaços de lona e,
com eles, cobre os mortos sobre a lousa. Deixa-lhes apenas os pés de fora. A
mulher sem chinelas, com sangue coagulado entre os dedos abertos; as grandes
botas gastas e de cadarços do alemão andarilho, que amanheceu morto no oitão do
armazém da praia, onde se alojara: o enorme saco e o livro de impressões,
folheado por muitos dedos, foram recolhidos à delegacia. É preciso cobrir os
mortos, proteger-lhes as cabeças. As corujas descem pela clarabóia. Têm voo
brando, impressentido, num cair de asas leves, como num sopro de morte. De
repente, dá-se conta de sua presença, das asas de pluma sem ruído. Alteiam-se e
pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados, que fulgem
na noite, divididos no meio.
- Xô, praga!
Os pedaços de lona ficam dobrados a um canto da
sala escura, e ele os puxa sempre, curtos, deixando à mostra os pés inertes.
Indispensável fazê-lo; depois fechar a luz triste da lâmpada, que desce pelo
fio longo com teias de aranha. O facho da lâmpada de pilhas ainda percorre o
teto de travejamento antigo. Crescem e oscilam as sombras: as botas de cadarço
do alemão contra a parede – umas botas de muitas viagens. As corujas rasgam
mortalha a noite toda na copa das altas árvores do terreno. O facho de luz
tenta a densidade das folhas, corre cinzentos telhados, passa pela torre da
capela, detém, ao longe, na janela de vidro do nosocômio. Em qualquer parte, na
noite, estarão as corujas. Elas rasgam mortalha, agourentas, cortam o silêncio,
sacudindo a vigília dos doentes. Recolhem-se, de dia, ao sótão da capela, onde
pegam os ratos, que guincham nas suas garras. Necessário subir ao sótão,
desfazer-lhes os ninhos. Falará com Irmã Jacinta, diretora do nosocômio, quando
ela vier para a ala dos indigentes, ativa, tilintando as chaves no bolso do
hábito. Ela mandará que Antero, jardineiro, trepe ao sótão. Ele é moço e
divertido. Torcerá o pescoço das corujas, com os cabelos cheios de teia de
aranha, e as atirará ao pátio do alto da torre, pilheriando com as enfermeiras.
É preciso exterminar as malditas, que rasgam mortalha na noite, enquanto o
facho de luz as procura na sombra densa das árvores:
- Xô, praga!
Resmunga, conversa sozinho, repete-se. Torna a experimentar as trancas das janelas, teima em ajeitar os pedaços de lona, que modelam saliências rígidas. O pedaço de lono do alemão ficou curto como uma camisa: têm presença apenas as botas. Resmunga. Se pudesse, ele próprio poria uma teia de arame na clarabóia. Já falou a Dr. Joca, que ele trata por você, porque foram criados juntos, e um xinga o outro. O bisturi do Joca corta sem pressa, profissionalmente. Luvas ensaguentadas, bigode branco amarelecido pelo fumo, ele apanha o cigarro com a boca no cinzeiro sobre o peitoril da janela. Secciona pedaços:
- Leva o balde.
O velho o recolhe, e conversa consigo mesmo, o corpo atarracado mal contido no dólmã de mescla.
Quando o homem que chegou do interior e se hospedou no quarto da pensão veio fazer velório ao corpo descarnado do filho, ele lhe deu a lâmpada de pilhas e o advertiu para as corujas. Elas desciam pela clarabóia, mesmo com a luz da lâmpada. Era preciso manter as velas acesas nos castiçais. Só assim as desgraçadas não vinham: temiam queimar as asas nas chamas. Ficavam rasgando mortalha no alto das velhas árvores ou na torre da capela.
Sem a presença das velas, elas surgem sempre, impressentidas, como num
sopro de mort: alteiam-se leves, pousam sobre o peito dos mortos e com o bico
arranham-lhes os olhos, que fulgem parados e indefesos na noite.
* Este conto faz parte
da coletânea Contos Escolhidos de Moreira Campos, edição da Imprensa
Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1971.
* 2014 é um ano importantíssimo para celebrarmos, apesar de celebrarmos sempre esse grande escritor, o centenário do nascimento de Moreira Campos. A Bienal vem ai com homenagens, mas o blog já começa com as suas.
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