Tortura, por que não? - Texto de Maria Rita Kehl
Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo
O
motoboy Eduardo Pinheiro dos Santos nasceu um ano depois da promulgação da lei
da Anistia no Brasil, de 1979. Aos 30 anos, talvez sem conhecer o fato de que
aqui, a redemocratização custou à sociedade o preço do perdão aos agentes do
Estado que torturaram, assassinaram e fizeram desaparecer os corpos de
opositores da ditadura, Pinheiro foi espancado seguidas vezes, até a morte, por
um grupo de 12 policiais militares com os quais teve o azar de se desentender a
respeito do singelo furto de uma bicicleta. Treze dias depois do crime, a mãe
do rapaz recebeu um pedido de desculpas assinado pelo comandante-geral da PM.
Disse então aos jornais que perdoa os assassinos de seu filho. Perdoa antes do
julgamento. Perdoa porque tem bom coração. O assassinato de Pinheiro é mais uma
prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país
tendem a se repetir. Em infeliz conluio com a passividade, perdão, bondade,
geral.
Encararemos
os fatos: a sociedade brasileira não está nem aí para a tortura cometida no
País, tanto faz se no passado ou no presente. Pouca gente se manifestou a favor
da iniciativa das famílias Teles e Merlino, que tentam condenar o coronel
Ustra, reconhecido torturador de seus familiares e de outros opositores do
regime militar. Em 2008, quando o ministro da Justiça Tarso Genro e o
secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi propuseram que se reabrisse no
Brasil o debate a respeito da (não) punição aos agentes da repressão que
torturaram prisioneiros durante a ditadura, as cartas de leitores nos
principais jornais do País foram, na maioria, assustadoras: os que queriam
apurar os crimes foram acusados de ressentidos, vingativos, passadistas. A
culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica
autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado: quem não deve não
teme; quem tomou, mereceu, etc. A depender de alguns compatriotas, estaria
instaurada a punição preventiva no País. Julgamento sumário e pena de morte
para quem, no futuro, faria do Brasil um país comunista. Faltou completar a
apologia dos crimes de Estado dizendo que os torturadores eram bravos agentes
da Lei em defesa da - democracia. Replico os argumentos de civis, leitores de
jornais. A reação militar, é claro, foi ainda pior. "Que medo vocês (eles)
têm de nós."
No
dia em que escrevo, o ministro Eros Graus votou contra a proposta da OAB, de
revisão da Lei da Anistia no que toca à impunidade dos torturadores. Para o
relator do STF, a lei não deve ser revista. Os torturadores não serão julgados.
O argumento de que a nossa anistia foi "bilateral" omite a grotesca
desproporção entre as forças que lutavam contra a ditadura (inclusive os que
escolheram a via da luta armada) e o aparato repressivo dos governos militares.
Os prisioneiros torturados não foram mortos em combate. O ministro, assim como
a Advocacia Geral da União e os principais candidatos à Presidência da
República sabem que a tortura é crime contra a humanidade, não anistiável pela
nossa lei de 1979. Mas somos um povo tão bom. Não levamos as coisas a ferro e fogo
como nossos vizinhos argentinos, chilenos, uruguaios. Fomos o único país, entre
as ferozes ditaduras latino-americanas dos anos 60 e 70, que não julgou seus
generais nem seus torturadores. Aqui morrem todos de pijamas em apartamentos de
frente para o mar, com a consciência do dever cumprido. A pesquisadora
norte-americana Kathrin Sikking revelou que no Brasil, à diferença de outros
países da América latina, a polícia mata mais hoje, em plena democracia, do que
no período militar. Mata porque pode matar. Mata porque nós continuamos a dizer
tudo bem.
Pouca
gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do pano, durante a
ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje, passivos e horrorizados.
Doença grave, doença crônica contra a qual a democracia só conseguiu imunizar
os filhos da classe média e alta, nunca os filhos dos pobres. Um traço muito
persistente de nossa cultura, dizem os conformados. Preço a pagar pelas
vantagens da cordialidade brasileira. "Sabe, no fundo eu sou um sentimental
(...). Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/
Meu coração fecha os olhos e sinceramente, chora." (Chico Buarque e Ruy
Guerra).
Pouca
gente parece perceber que a violência policial prosseguiu e cresceu no País
porque nós consentimos - desde que só vitime os sem-cidadania, digo: os pobres.
O Brasil é passadista, sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para
terminar de vez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É
passadista porque teme romper com seu passado. A complacência e o descaso com a
política nos impedem de seguir frente. Em frente. Livres das irregularidades,
dos abusos e da conivência silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que
ainda toleramos, dentro do nosso Estado frouxamente democratizado.
*Texto de Maria Rita Kehl para o jornal, O Estado de São Paulo, que bem poderia ter sido publicado, ontem, hoje, amanhã ou em 2010, como foi o caso. Essa realidade está presente todos os dias no nosso País, só não vê quem não quer.
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