Escrevendo meias*minhas palavras – Minha experiência num cartel sobre escrita¹




Escrevendo meias*minhas palavras – Minha experiência num cartel sobre escrita
Sabrina Barros Ximenes

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Tratado geral das grandezas do ínfimo – Manoel de Barros

O Cartel é, para Lacan, um dispositivo importante na formação. Composto a partir de três pessoas, com o máximo de cinco e uma boa soma sendo quatro, onde um desses integrantes desempenha o papel de Mais-Um. O Cartel se forma em torno de um tema em comum e serve como um espaço em coletivo para cada um desenvolver dentro do grupo suas especificidades dentro da proposta.
No nosso Cartel não foi diferente. O tema que nos moveu foi o da Escrita e quando proposto, por mais iniciante nas leituras lacanianas, me animei bastante para acompanhar e desenrolar tal proposta.
Esse texto não se propõe aprofundar acerca do método, nem talvez enquanto aporte teórico, na realidade, surgiu enquanto elucubrações acerca da caminhada, de mudanças no percurso e da perda do objeto primeiro para possibilitar novos começos. Alguns nem bem delimitados ainda, por saber que ainda não os sei.
A escrita é algo que carrego em mim desde muito nova, foi inclusive o que me levou para inúmeros lugares prazerosos e outros nem tanto nesse percurso de vida. Foi quase automático ao ouvir tal tema me dispor a participar. Porém, foi uma proposta que rapidamente saiu da linha do que havia imaginado para um outro lugar. Lugar esse interessante também, mas que me causava muita angústia – tema esse constante no que vivia no momento. Daí se misturou criador e criatura e algo que poderia ser gostoso de se trabalhar se tornou algo curioso de procurar, mas que em certos momentos tentava evitar. Ou seja, havia algo rondando nessa palavra.
Nosso Cartel foi marcado por diversos momentos de entraves e isso poderia ter sido algo ruim, mas acredito que eram nas conversas posteriores que voltava a vontade, por mais carregada de entraves e dificuldades que fosse, de estar lá. E acredito que nesse momento de palavra foi que mais fizemos determinadas escritas em relação à proposta. Daí resolvemos entrar num caminho tortuoso da escrita chinesa. Confesso, esse seminário e alguns textos que o envolviam, foi um dos momentos de maior “viagem”e dificuldade, mas que trouxe indagações, associações riquíssimas. E sempre voltava com uma tonelada pesada nas costas, mas me animava poder ter essa experiência dentro de um grupo. Desse grupo em específico.
De início, no meu imaginário, seria um grande espaço para falarmos da palavra escrita, da possibilidade desse encontro entre psicanálise e literatura, levando alguns autores, pensando assim. Foi aí que entendi essa parte “é um estudo em coletivo, mas onde cada um tratará de forma individual seu produto”. E, de fato, um tema tão amplo, como afunilá-lo? Resolvi ir indo na direção que estava no momento, as autoras femininas e o tema da angústia. Só fez aumentar a minha, mesmo assim me deu um norte considerável dentro dos textos que estávamos lendo e do que eu estava descobrindo.
E assim como o inconsciente que inventa e cifra, ao invés de decifrar, isso não ocorre. A possibilidade dessa transformação de escrita ruína – como lembro que li em algum texto – em significante, foi base para novas descobertas dentro do cartel. Que tornaram as ideias ainda mais obnubilosas, mas com a angústia dessa forma trabalhando muito mais a favor do que contra. Hoje tenho um tempo meu particular que permeia esse caminhar outro.
Então, voltando ao início me questionei o real motivo de estar ali. Poderia ter sido um caminho novo para um projeto pessoal de escrita? Uma nova forma de balizar aquele estado que por mais que me visse nele, por outras razões fui cotidianamente me afastando? Então lembrei de Pessoa e da sua afirmação “Eu escrevo para salvar a alma. Parecia exatamente aquele o meu lugar, ou Clarice que disse uma vez “ Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que foi essa que segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.”
Ou então, como escreveu Manoel em O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Na verdade, o cartel sobre escrita abriu outros olhares, foi caminho para olhar um passado aparentemente perdido, mas que que teimava em bater à porta. E se viver é um rasgar-se e remendar-se, como bem disse Guimarães em João Porém, o criador de perus, costuro aqui essas meias palavras. E que não são suficientes. Existe uma briga interna em mim sobre essa questão “suficiente”, mas o curioso é que foram essas meias palavras insuficientes em sua própria constituição faltosa, que conseguiram sustentar um fio já quase perdido e me segurar nessa possibilidade de – como ainda – fazer da minha escrita mote e saída e reviver o por quê da psicanálise.






 ¹Texto apresentado na IV Jornada de Cartéis do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza

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