João Porém, o criador de perus - João Guimarães Rosa


Agora o caso não cabendo em nossa cabeça. O pai teimava que ele não fosse João, nem não. A mãe, sim. Daí o engano e o nome, no assento de batismo. Indistinguível disso, ele viçara, sensato, vesgo, não feio, algo gago, saudoso, semi-surdo; moço. Pai e mãe passaram, pondo-o sozinho. A aventura é obrigatória. Deixavam ao Porém o terreno e, ainda mais, um peru pastor e três ou duas suas peruas.
E tanto; aquilo tudo e egiptos. Desprendado quanto ao resto, João Porém votou-se às aves – vocação e meio de ganho. De dele rir-se? A de criar perus, os peruzinhos mofinos, foi sempre matéria atribulativa, que malpaga, às poucas estimas.

Não para o João. Qual o homem e tal a tarefa: congruíam-se, como um tom de vida, com riqueza de fundo e deveres muito recortados. Avante, até, próspero. Tomara a gosto. O pão é que faz o cada dia.

Já o invejavam os do lugar – o céu aberto ao público – aldeiazinha indiscreta, mal saída da paisagem. Ali qualquer certeza seria imprudência. Vexavam-no a vender o pequeno terreiro, próprio aos perus vingados gordos. Porém tardava-os, com a indecisão falsa do zarolho e o pigarro inconcusso da prudência. Tornaram; e Porém punha convicção no tossir, prático de economias quiméricas, tomadas as coisas em seu meio.

Desistiram então de insistir, ou de esperar que, mais-menos dia, surgida alguma peste, ele desse para trás. Mas lesavam-no, medianeiros, no negócio dos perus, produzidos já aos bandos; abusavam de seu horror a qualquer espécie de surpresas. Porém perseverava, considerando o tempo e a arte, tão clara e constantemente o sol não cai do céu. No fundo, coqueirais. Mas inventaram, a despautação, de espevitar o espírito.

Incutiram-lhe, notícia oral: que, de além-cercanias, em desfechada distância, uma ignorada moça gostava dele. A qual sacudida e vistosa – olhos azuis, liso o cabelo – Lindalice, no fino chamar-se. João Porém ouviu, de sus brusco, firmes vezes; miúdo meditou. Precisava daquilo, para sua saudade sem saber de quê, causa para ternura intacta. Amara-a por fé – diziam, lá eles. Ou o que mais, porque amar não é verbo; é luz lembrada. Se assim com aquela como o tivessem cerrado noutro ar, espaço, ponto. Sonha-se é rabiscos. Segredou seu nome à memória, acima de mil perus extremadamente.

Embora de lá não quisesse sair, em busca, deixando o que de lei, o remédio de vida. – Não ia ver o amor? – instavam-no, de graça e com cobiça. Arrendar-lhe-iam o sítio, arranjavam-lhe cavalo e viático… Se bem pensou, melhor adiou: aficado, com recopiada paciência, de entre os perus, como um tutor de órfãos. Sustentava-se nisso, sem mecanismos no conformar-se, feito uma porção de não-relógios. A moça, o amor? A esperança, talvez, sempre cabedora. A vida é nunca e onde.

E vem que o tiveram de louvar – sob pressão de desenvolvimento histórico: um, dos de caminhão, da cidade, fechara com o Porém dos perus tráfico ajuste perfeito; e a bela vez é quando a fortuna ajuda os fracos.

Nem se dava disso, inepto exato, cuidando e ganhando, só em acrescentamentos, homem efetivo, já admirado, tido na conta de outro. Pasmavam, os outros. Pudera crer na inventada moça, tendo-a a peito? Ágil, atentivo, sempre queria antigas novidades dela.

De dó ou cansaço, ou por medo de absurdos, acharam já de retroceder, desdizendo-a. porém prestou-lhe a metade surda de seus ouvidos. Sabia ter conta e juíxo, no furtivar-se; e, o que não quer ver, é o melhor lince. Aceitara-a, indestruía-a. Requieto, contudo, na quietude, na inquietude. O contrário da idéia-fixa não é a idéia solta.

– “Aconteceu que a moça morreu…” – arrependidos tiveram então de propor-lhe, ajuntados para o dissuadir, quase com provas. Porém gaguejou bem – o pensamento para ele mesmo de difícil tradução: – Esta não é minha vez de viver… – quem sabe. Maior entortou o olhar, sinceramente evasivo, enquanto coléricos perus sacudiam grugulentos. Tanto acreditara? Segurava-se à falecida – pré-anteperdida. E fechou-se-lhe a estrada em círculo.

Porém, sem se impedir com isso, fiel à forte estreiteza, não desandava. Infelicidade é questão de prefixo. Manejava a tristeza animal, provisória, perturbável. Se falava, era com seus perus, e que viver é um rasgar-se e remendar-se. Era só um homem debaixo de um coqueiro.

Vem que viam que ele não a esquecia, viúvo como o vento. Andava o rumo da vida e suas aumentadas substituições. Ela não estava para trás de suas costas. Porém, Lindalice, ele a persentia.
Tratava centena de peruzinhos em gaiolas, e outros tantos soltos, já com os pescoços vermelhos.

Bem que bem – e porque houvesse justo o coincidir fortuito – moveram de o fazer avistar-se com uma mocinha, de lá, também olhos azuis, lisos cabelos, bonita e esperta, igual à outra, a urdida e consumida. Talvez desse certo. Pois, por sombras! Porém aqui suspendeu suma a cabeça, só zarolhaz, guapamente – vez tudo, vez nada – a mais não ver.

Deixaram-no, portanto, dado às aranhas dos dias, anos, mundo passável, tempo sem assunto. E Porém morreu; nem estudou a quem largar o terreno e a criação. Assustou-os.

Tinham de o rever inteiro, do curso ordinário da vida, em todas as partes da figura – do dobrado ao singelo. João Porém, ramerrameiro, dia-a-diário – seu nariz sem ponta, o necessário siso, a força dos olhos caolhos – imóvel apaixonado: como a água, incolormente obediente.

Ele fora ali a mente mestra. Mas, com ele não aprendiam, nada. Ainda repetiam só: –  “Porém! Porém…” Os perus, também.


ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras estórias). 9 ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2009, p. 118 -121.

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