Fevereiro - Matilde Campilho
Escute só,
isto é muito sério.
Anda, escuta que isso é sério!
O mundo está tremendamente esquisito.
Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é
assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura
entre falhas e iluminação?
Aliás, me diga, você percebe alguma
coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao
invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a
geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do
misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.
O amor é um animal tão mutante, com
tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?
Então, acho que o amor quando aparece
é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do
termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se
dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que
deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.
Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou
torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado
quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas.
Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora.
Hoje ainda faz bastante frio. As
cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando
suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de
sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de
cowboys.
[suspiro]
O mestre ainda não veio decretar o
começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está
absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta
hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade
fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade
do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade
limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas por causa do que me
ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente
acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a
agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será
nosso batismo do vôo para nossa persistência no amor. João molhou a testa de
Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.
De que lado você está, eu não me
importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você
escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes
cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir
ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual
político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que
cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de
Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.
É… é impossível viver no país de
Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta,
isso não é impossível, não.
Escuta, isso é sério!
Andamos crescendo juntos,
distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso
entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da
cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.
Portanto, escute. Isto é muito sério!
Isto é uma proposta aos trinta anos.
Agora que o mercúrio assumiu sua
posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no
caminho até lá, vem dançar comigo, vem!
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