Portugal, osso firme - Matilde Campilho


Aquela estrada empoeirada a caminho da aldeia de Deixa-o-Resto pode levar horas a ser cruzada. Mentira, são poucos minutos. Mas são poucos minutos todos rodeados de pinheiros mansos, ervas rasteiras, caminhos de areia e pedra, casas ao sol ou à sombra e debaixo de qualquer sombra um novo desenho. Então são horas. Qualquer minuto costurado a espanto vira hora, toda a gente sabe. Minha avó sabia. Foi a minha avó quem me ensinou a desdobrar o tempo, foi ela quem me ensinou a parar de frente para as casas e para as pessoas e para o mar. A minha avó explicou-me muito cedo que só a paragem permite o amor, que podemos errar mais de mil vezes e ainda assim voltar atrás, que podemos acelerar para longe e abandonar todas as coisas, mas as coisas vêm conosco. Tudo o que é nosso fica connosco. E ainda bem. É por causa disso que agora eu sei que minha avó nunca morrerá, e que o país de onde venho também não.  Os eixos que constroem a nossa massa são o osso que nos sustém até ao fim.  Saí de Portugal muitas vezes, fui morar em cidades muito mais frias que Lisboa, atravessei supermercados atolados de vozes estrangeiras, apanhei estrelas do mar em enseadas do norte, vi pássaros desenvolvendo as penas no meio da vegetação dos trópicos. Espantei-me muito em cada passo forasteiro, foi tudo muito bonito mesmo quando não foi. Mas nunca fui abandonada por meu dialeto íntimo. De todas as janelas eu consegui ver as aldeias alentejanas, Deixa-o-Resto e etc., vi eucaliptais muito mais altos do que os homens, vi o sal que dá cabo do rosto de certos pescadores e ainda bem, vi peixes se debatendo com marés atlânticas, vi o meu país brilhando ao longe. Brilhando pelo golpe de luz alentejana ou ribatejana, de norte, de sul, de centro. Não houve um só dia em que não olhasse o espelho e não reparasse nesse brilho em meus cabelos. O meu país é filho do brilho e da cor. É feito daquele roxo sideral que constrói os jacarandás em flor, feito da luz meio africana que se derrama em nossos sapatos quando caminhamos na cidade, sim agora eu falo de Lisboa, falo das árvores que abrem um corredor natural nas avenidas, falo dos carros atolados de cerejas no verão, falo até mesmo do inverno, de quando as marés tentam invadir o Cais das Colunas e as nossas cabeças, ou de quando as luzes de Natal piscam muito mais que os nossos olhos franzidos de medo. Às vezes é bom ter medo em casa – o medo, acho que minha avó também dizia isso, às vezes vem, mas logo vai embora. Aqui em Portugal somos descendentes das marés, sabemos que tudo o que sobe também desce, e vice-versa. A minha avó ensinou-me que o nosso país é muito bonito, que o povo dele mais ainda, e que a maior arma para aceder à beleza é a atenção. Eu juro que minha avó nunca deu um conselho errado. Olhemos a rua.
por Matilde Campilho


*Uma amiga me enviou. Obrigada, amiga, andava precisada.

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