Aquarius - filme de Kleber Mendonça Filho

Eu sei que eu tenho um jeito
Meio estúpido de ser
E de dizer coisas que podem magoar e te ofender 
Mas cada um tem o seu jeito
Todo próprio de amar e de se defender 


                 Faz tempo a gente sente vontade de gritar, de dizer que anda tudo muito errado. Onde foi que a memória morreu? Em que ponto esquecemos de guardar a história que nos afeta? É, dá vontade de gritar, mas parece que ninguém vai ouvir. Um grito para tentar mostrar que a sombra que foi cortada fará uma enorme diferença vinte minutos depois e que o sol escaldante não traz nenhuma vitamina D, mas arranca desespero daqueles que precisam dele se safar.
                Faz tempo muita coisa anda mudada e em silêncio, com medo, vamos costurando saídas entre os nossos, porque os outros... nesses a gente não consegue chegar. Faz tempo espero respostas, mesmo sabendo que só quem pode escrevê-las sou eu.
               Ontem eu não tive resposta, mas vi meu grito gritado junto. Vi minha casa, minha cidade, os meus silêncios compartilhados. Vi vontade de mudar o mundo, tudo de novo, como antes de ter quebrado o que havia em mim. Ontem assisti a uma possibilidade, e que palavra linda é possibilidade. Ontem éramos Clara, todos nós, um cinema inteiro, uma cidade inteira, uma casa, um prédio esquecido, o Melrose, o São Pedro, a Casa do português, o Bangalô da escola Nossa senhora da Assunção, a árvore do lado do Mambembe... eu, você.





                Aquarius fala de memória, de lembrança - das boas e ruins, de silêncios, de coragem. É a história de uma mulher, que resiste em um lugar que ninguém mais quer saber, que abandonado desfaz-se de suas histórias e começa a construir presentes feitos de devastação, ódio, esquecimento, mesquinhez. Essa história fala de muitos de nós, esse edifício pode ser a árvore centenária cortada, o prédio fundante da cidade demolido, nossos avós, o sertão imenso, o outro, eu.
                Narrando a história de uma mulher que através do seu corpo marca junto com outras histórias a perpetuação de um passado sempre presente, que nos móveis, fotografias, discos, pele e pessoas costura uma vida que de repente vale nada frente ao dito discurso do progresso do capital. Clara é a única que resiste em um prédio que é desejado por uma construtora para ser demolido e no lugar construído um desses mega empreendimentos de beira de praia.
                O filme é muito bem montado para transmitir essa realidade, tanto em enquadramento, fotografia, luz e principalmente som - e silêncios - (que bela trilha a escolhida), todos os elementos que o diretor quer transmitir se encontram disponíveis para o grande público. E nos mínimos detalhes o filme te prende do início ao fim. Faz tempo não saio da sala de cinema tão pensativa e cheia de planos e esperança dentro de mim. Kleber Mendonça Filho conseguiu construir um filme de fala muito forte, politicamente falando, que transmite o que hoje vivemos em torno dessas empreiteiras e construtoras, amparadas pelo grande capital que consome e engole sem querer saber quem é o sujeito que ali é retirado de sua história. É um filme que fala do agora, do que presentemente ocorre no País. Esse País que passa por um golpe de estado financiado por essas mesmas grandes máquinas que desejam o controle absoluto dos principais meios de gerência da nação.
                 Aquarius é um filme para ser visto e revisto, ser vivido, ter suas ações de resistência como bandeiras de luta, para ser cantado. É um filme que se não mexer, não incomodar, não causar nada no espectador há algo a ser pensado. Se a memória não importa para a 'construção do presente' essa é uma charada que não foi bem resolvida. Politicamente falando eu preciso saber do meu passado, socialmente falando eu preciso saber da história que passou, individualmente falando meu passado me constitui e me faz pensar novos presentes. A memória e o afeto na luta são as melhores ferramentas de mudança, pois elas funcionam como potente arma daqueles que não esqueceram sua humanidade e que pretendem com ela mudar.
                  Que a luta seja uma constante e que o medo não nos consuma. Por diversos momentos do filme fiquei apreensiva achando que algo fisicamente violento poderia ocorrer, vivemos cotidianamente esse medo "de algo" e, por vezes, nos entregamos a ele ou paramos de tentar por medo desse 'algo' que nunca vem, só paira. Talvez seja preciso mais força para ir lá e enfrentar, olhar pela fechadura, abrir a porta fechada, encarar o escuro, o desconhecido, distribuir bom dia e na resistência, quando cansar, tomar um banho de mar.
                  Eu posso falar mais sobre o filme, escrever sem parar tudo o que me causou, mas desejo mesmo é instigar vocês a assistirem, são tantas formas possíveis de vê-lo e que magnífico é poder enxergar, apesar de tudo, enxergar novas formas possíveis de viver e resistir, por agora, por ontem e por amanhã.



Aquarius está em cartaz no Cinema do Dragão do Mar- Fundação Joaquim Nabuco


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